Estado de Minas POLÊMICA DAS CADEIRINHAS

Contrariando questões técnicas, Denatran afirma que cintos de três pontos podem ser adaptados

Em vez de exigir que escolares passem a oferecer cintos de segurança de três pontos, Denatran transfere responsabilidade para usuário e diz, equivocadamente, que cintos podem ser adaptados para receber cadeiriinhas


postado em 01/08/2015 14:22 / atualizado em 01/08/2015 14:55

 

A motorista de escolar Ângela Lopes já fez de tudo para dar um jeito de levar cadeirinha ou booster: impossível fazer com segurança, sem ter cinto de três pontos(foto: Cristina Horta/EM/D.A Press - 26/6/15)
A motorista de escolar Ângela Lopes já fez de tudo para dar um jeito de levar cadeirinha ou booster: impossível fazer com segurança, sem ter cinto de três pontos (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press - 26/6/15)
 

As incoerências no Brasil parecem não ter fim. Depois de promulgar a estranha medida que obriga os transportadores de escolares a usarem dispositivos de retenção para crianças, de maneira geral conhecidos como cadeirinhas, sem que os veículos usados nesse transporte tenham cintos de segurança de três pontos (para instalação dos dispositivos é necessário que o cinto seja de três pontos), agora o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) afirma que os cintos não precisam vir de fábrica, mas podem ser adaptados em “oficinas especializadas”. Absurdo imaginar que o órgão máximo de trânsito do país não tenha conhecimento de que a instalação de cintos de segurança requer pontos específicos de ancoragem, com testes e validação pelos fabricantes, sob pena de o equipamento não funcionar adequadamente.
“Não é possível fazer uma adaptação. O cinto é homologado pela montadora e seus pontos de fixação têm que suportar impactos de 1,5t”, afirmam os engenheiros Oliver Schulze, integrante da Comissão Técnica de Segurança Veicular da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil), e Vítor Gambini, engenheiro de homologação de produtos da Takata, empresa fabricante de equipamentos de segurança para veículos. “Quando o veículo tem o cinto subabdominal já está ancorado em dois pontos e há a necessidade de um terceiro ponto superior, que resista a pelo menos 1,5t de tração, pois a energia durante um impacto é muito alta. E se esse terceiro ponto for colocado em qualquer lugar, pode não suportar nada. Portanto, é inviável querer adaptar um cinto de segurança”, explicam.
“Isso não é possível uma vez que os veículos com cinto abdominal não estão preparados para o cinto de três pontos. Se a pessoa resolver instalar, por conta própria, pode comprometer o funcionamento do cinto e a segurança do usuário. Em caso de colisão, há sérios riscos”, acrescenta o supervisor de engenharia de produto da ZF TRW, Marcelo César, empresa especializada na produção e fornecimento para montadoras de equipamentos de segurança. “A substituição só seria possível se a própria montadora fizesse as modificações adequadas para a fixação do cinto de três pontos, que deve ser na carroceria do veículo. São feitos testes de homologação e validação. Só assim é possível”, continua. O especialista acrescenta que os pontos de ancoragem precisam ser cuidadosamente estudados e têm que estar presos ao chassi, ou seja, à estrutura do veículo, para que suportem o impacto em caso de acidente. “Também precisam estar bem localizados para que o cinto cumpra com a função de reter o usuário. E isso tem que partir da montadora”, garante. Marcelo acrescenta ainda que os cintos de segurança são homologados exatamente para atender à legislação do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), conselho normalizador do Denatran, órgão que, ironicamente, afirma que os cintos podem ser adaptados.

IRRESPONSABILIDADE “É possível fazer adaptação do cinto de dois pontos para o de três pontos em oficinas especializadas em cintos de segurança”, afirmou o Denatran, por e-mail, à reportagem, quando questionado se não seria o caso de criar nova resolução determinando aos fabricantes de veículos destinados ao transporte escolar a oferecerem, de série, modelos com cintos de três pontos para todos os passageiros. Novamente questionado sobre os riscos e sobre quais seriam essas oficinas, o órgão respondeu que: “Trata-se de oficinas comuns, de fácil acesso ao cidadão, sendo especializadas em cinto de segurança”. Perguntamos se o órgão assumiria a responsabilidade de aceitar tais adaptações. E o problema foi transferido para o cidadão: “A responsabilidade de atestar a qualidade de um serviço é de quem o presta”, disse o Denatran. Perguntamos então sobre a homologação desses cintos e novamente o órgão máximo de trânsito do país se isentou: “Quem homologa o veículo é o Denatran, o que acontece no momento da criação do código de marca e modelo, estando essa relacionada à fabricação. Um veículo somente pode ser comercializado após homologado pelo Denatran”. Insistimos na homologação do cinto adaptado, depois de o veículo já estar no mercado, mas desta vez não obtivemos mais reposta.
A reportagem do caderno Vrum ouviu também as principais montadoras que atualmente fabricam modelos destinado ao transporte de escolares: Fiat, Renault, Mercedes, Peugeot e Citröen. Todos atestaram a complexidade de instalação do cinto de três pontos e afirmaram estarem estudando a legislação e as possibilidades de passarem a oferecer o equipamento nas vans mais usadas no transporte escolar, a partir do ano que vem (as cadeirinhas serão obrigatórias em fevereiro). A única van que disponibiliza o equipamento é a Ford Transit, que já foi comercializada no Brasil, mas a montadora informou que a importação do modelo foi suspensa por razões estratégicas de mercado.

LUZ Segundo o diretor de segurança veicular da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), Vilson Tolfo, apesar de não ser possível se fazer a adaptação do cinto, a AEA estuda uma maneira para que seja feito esse tipo de instalação, trocando-se os bancos e fazendo-se reforços no assoalho. O tema ainda está em fase de estudos na comissão técnica da AEA.

Entenda o caso
A Resolução 277/2008, do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), é que determina o uso dos dispositivos de retenção infantil para crianças, mas excluía os escolares;
Em junho deste ano, o Contran publicou a Resolução 533, excluindo os escolares das exceções, mas ainda havia dúvida em relação aos ônibus, que continuavam sendo exceção;
No último dia 23, a Resolução 541 esclareceu a dúvida, tirando das exceções todo e qualquer tipo de veículo escolar e, consequentemente, obrigando-os a usar as cadeirinhas e demais dispositivos.


Análise da notícia


APLAUSOS FRUSTRADOS

A exigência de que o transporte escolar seja feito com o uso dos dispositivos de retenção infantil, ou cadeirinhas de maneira geral, é extremamente importante e até vem tarde, visto que os dispositivos são essenciais para a segurança no transporte infantil. O problema é que não adianta criar leis que não têm como ser cumpridas, ou pior, incentivam gambiarras e podem tornar o transporte mais inseguro do que é hoje. O correto seria que antes de exigir do transportador que “se vire” para cumprir a lei, o Contran exigisse que os fabricantes de veículos destinados ao transporte escolar criassem soluções para oferecer o equipamento de fábrica, devidamente homologado e com segurança.

 

 

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação